Pandemia. Loucura. Morte.
É como se todos os sinos do mundo tocassem a rebate, os alarmes soassem, as sirenes não parassem de clamar. Isto no mundo, nos cinco continentes, mas sobretudo dentro das nossas cabeças, onde os alarmes são sempre mais fortes.
No supermercado olham-me com muito desdém; eu sou aquele que transporta os elementos mais bizarros: um vaso com uma pequena oliveira, tão diferente das oliveiras assassinas que vi há dias, a crescer à força de estímulos químicos e a matarem toda a fauna em seu redor, ali mesmo, no meu país de carne em chaga.
Um dos canais de televisão mente com todos os dentes que ainda tem: Portugal está parado. Não está. Está assustado mas está em ação. Da anedota pronta à fila do supermercado à ida à praia, que o corpo está a pedi-lo e o tempo ajuda.
Este canal de televisão não vê televisão?
Levo uma planta, como se o mundo dependesse de mim, junto-lhe um litro de leite e vou para a fila, enorme mas tolerável; a forma como me olham chega a ser assustadora, como se eu fosse o foco infecioso, o portador, o que vai contagiar, o tipo sem máscaras e com um vaso na mão, coisa indecente.
Ainda não morreu ninguém em Portugal, na Alemanha parece que também não – os diálogos são assim, e de repente todos sabem tudo e as soluções não acabam mais.
Olhe, diz a senhora, eu uso luvas enquanto isto durar. Sim, mas as luvas tocam onde? Em toda a parte. O que faremos se não pudéssemos tocar no nosso parceiro, beijar a nossa parceira, afagar os mais velhos, dar mimo aos mais novos?
Agora até já há sabonete nas casas de banho, diz uma miúda, com alegria.
Cumprimentarmo-nos com os cotovelos, lá vai o ritual, a simbologia. Nascerá daqui o novo ser humano, mais humano, mais solidário, ou soltar-se-á o animal frustrado que nos habita e lutaremos até à última morte pelo último recanto onde possamos espirrar até à saciedade?
O racismo não tarda: já viu os chineses, estão comprometidos, andam todos de máscara! Vá à loja deles e verá.
Não vou.
Recordo-me que um dos temas que estudo há anos com muita atenção é o da terrível gripe espanhola, a pandemia, a pneumónica, a grande tosse (como os franceses lhe chamaram), aquela que dizem ter começado em 1919 e ter morto mais pessoas que a terrível e imperdoável I Guerra Mundial, que nos envergonhou entre 1914 e 1918. Terão morrido mais de 40 milhões de pessoas em dezoito meses! Quase cem milhões em dois anos!
Ao contrário do que é divulgado em milhares de livros, em especial os que colocam o foco da epidemia nos Estados Unidos, eu discordo da forma como se conta a história da pandemia.
A famosa história divulga como no dia 4 de março de 1918, no Kansas (EUA), ocorreu o que foi considerado o primeiro registo do que ficou conhecido como Gripe Espanhola.
O local era destinado ao treino de tropas dos Estados Unidos para ir para a frente europeia na Primeira Guerra Mundial. O primeiro diagnóstico conhecido foi de um soldado. Albert Mitchell, cozinheiro do complexo militar de Camp Funston, no Kansas (Estados Unidos), foi à enfermaria queixar-se de febre, dores de garganta e de cabeça. O médico disse-lhe que devia estar com gripe e mandou-o para a cama, descansar. Foi o paciente número um da pneumónica que pouco depois varreu a Europa. E chegou a todos os continentes, tornando-se pandemia.
Ao contrário desta versão, eu situo o início da peste em 1917, aparentemente derivada de um foco original de roedores selvagens no país de Ordos, na China (mais concretamente em e Suiyuan, província histórica da China, hoje Mongólia Interior), que se alastrou depois aos territórios de Chahar e de Shan-si (ou Shanxi, província do Norte da China) e um amplo espaço territorial nas províncias chinesas de Zhili, Shandong, Anhui e Jiangsu, com um número de vítimas na ordem das 16 mil pessoas.
O estudo de Wu Lien-teh, Plague: a manual for medical and public healthworkers, (Praga: Manual para Trabalhadores Médicos e de Saúde Pública (Serviço Nacional de Quarentena, Xangai, China), editado em Xangai, não deixa dúvidas a respeito da origem da praga. Mas mesmo conhecida a origem, o que preocupa é a cura, ou o fim da praga. Foram anos e anos até que a pneumónica fosse controlada, vencida.
Podia dizer muito mais sobre o que se passou há mais de cem anos. O horror que chegou ao mundo. A forma quase ingénua e impreparada como o mundo, ferido pela guerra, teve de voltar a enterrar os seus semelhantes. Não consigo.
Há dias, no Arquivo Histórico Militar, encontrei numa caixa dedicada a Ricardo Jorge, médico, investigador e higienista, professor de Medicina e introdutor em Portugal das modernas técnicas e conceitos de saúde pública, nascido em 1858 e falecido em 1939, um texto em que se pedia higiene total para lutar contra a gripe. Dias depois desta minha leitura aparecia o coronavírus, por aí.
O meu vaso com uma muda de oliveira e eu. A impotência perante estes limites do mundo. Alguém passa por mim, de máscara. Máscara, ou um destino à espera de todos.
Alexandre Honrado